sábado, 29 de janeiro de 2011

Filmes

Há filmes que são só filmes. 
Película. 
Palavra. 
Fotografia. 
Uma imagem qualquer em movimento, que devora a sua própria escuridão. As sombras que reflectem o mundo ficam à porta do cinema. Quando têm a sorte de entrar, nunca se sentam, que as cadeiras são frágeis e não aguentam o peso que cabe na sala. Tudo é visto à lupa de uma ciência a que chamam humanidade. Vemos. Ouvimos. Sentimos. Mas o toque nunca existe senão o da luz no ecrã branco. Queria dar-te a mão, para não teres medo de alguma coisa instalada algures entre o bilhete e o balde de pipocas que seguras. Can I keep you? Um dia, vou ser a estrela de cinema que te dá um beijo de boa noite, ternurento e apaixonado, antes de adormeceres. Mas só se tu quiseres muito mesmo, que não gosto de esbanjar doçura assim.
O filme continua a ser só um filme. Nem sequer se pode gabar de ser uma reles adaptação.
É só um filme.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Fundamentalismos Cívicos

Podes não concordar com qualquer um dos candidatos, mas podes sempre marcar a tua posição. Podes votar em branco. Podes votar nulo. Mas vota. Não te esqueças que, se não votares, nem sequer tens moral para refilar no fim. A verdade é que somos nós quem os põe lá em cima. Eu, tu, os nossos pais, os nossos amigos, os nossos vizinhos. Se queres mudar o que achas que está mal ali, começa por sair de casa no domingo e vai votar. Mesmo que não votes em ninguém.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

#1

O comboio estava quase vazio, como era costume àquela hora. Tão ou mais vazio que o do Barreiro. Mas ela sabia que aquele tinha duas carruagens, pelo que mesmo estando vazio, arrastava sempre o peso das gentes empacotadas da linha de Sintra. Vá lá, ao menos hoje notava-se o cheiro dos milhares de banhos matinais. É sempre bom começar a semana limpinho - a segunda-feira nunca falhava. Ao menos isso.
Quando saiu, viu que afinal o mundo muda nos intervalos dos dias em que nada acontece. A estação que estaria pronta cinco anos depois do início - ou assim prometia a placa gigante do Ministério das Obras Públicas - já estava em fase de conclusão, apesar das quatro linhas planeadas serem ainda e apenas duas. E ela não tinha mudado de casa havia sequer um ano.
75km mais tarde, a percepção de universo pararelo à Lisboa que tanto amava era diferente. Linha de Sintra, Linha de Cascais, Oeiras, Margem Sul e aquele bocado para lá de Sacavém, que quase ninguém se lembrava que existe. E ali estava ela, suburbana convicta, filha de um dormitório que nunca adormece a frequência dos 60hz  (o zumzum dos carros lá ao fundo...). Salvava-se o facto de ter tido a sorte de viver num sexto andar, com vista desafogada, com direito a uma paisagem ainda verde e uma réstia de mar lá quase nos confins do horizonte.
Um dia, a densidade populacional dos prédios de dois elevadores deixou de a afogar. Mudou-se para o outro lado do Tejo, por força das circunstâncias, e a localidade rente ao IC19 deu lugar a uma vila. Mas uma vila sem o glamour do dois L's importados graças ao turista estrangeiro, nem o carimbo da UNESCO. Uma vila, no verdadeiro e desolador sentido rural da palavra, já que ter ido morar para ali tinha sido uma tragédia.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Página 129

Depois do último amor, ela tinha decidido que não ia mergulhar mais em palavras que não eram as suas. Não ia voltar a dedicar excertos de textos ou letras de canções. Não ia voltar a usar frases de outras canetas ou teclas para agarrar o amor de alguém. Não. Não. E não. 
Mas o Natal trouxe-lhe dois livros de poesia. Em vez de "Boas Festas", o postal do saco colorido trazia instruções claras, uma página específica. Não foi preciso procurar: já estava marcada com uma folha. Caligrafia pouco legível e uma dedicatória de tamanho A4. Afinal, ainda havia alguém que a fazia ficar de lágrima a descoberto no meio de um sorriso. Acabava sempre por resvalar tudo para a pieguice do amor. Paciência. Agora já estava. Tudo de novo. Uma vez mais. O medo, a insegurança e a vontade do para sempre. Mas ele deu-lhe o seu poeta preferido, aquele que ela nunca conseguia encontrar no meio de prateleiras e prateleiras de livrarias pela cidade fora - ele merecia o benefício da dúvida. Que no final de contas, o poema que ela mais tinha gostado nessa noite fora a prosa que ele encaixara nas quadrículas que marcavam o soneto da página 129.


"Não sei nunca se é isto exactamente
o que chamam amor - esta vontade
de imaginar assim a força que há-de
tornar-nos mais felizes de repente"
Fernando Pinto do Amaral