domingo, 30 de dezembro de 2012

#24

Tenho lido muita banda desenhada. O que significa que tenho lido muito. Ou, não sendo muito, tenho lido mais do que os últimos anos me têm deixado. É certo que a tecnologia ajudou, mas não fosse a derradeira força das palavras (e das imagens) e não estaria tão aconchegada esta noite. O hip-hop também tem tomado bem conta de mim. Parece que encontro de mim nos versos alheios aquilo que sei de cor mas não conheço. Ando sempre a nadar fora de pé. O sossego chega com o conforto de saber que não estou sozinha. É por isso que gosto de ler: porque aquece e arrefece o que está cá dentro, qual microondas de sensações. Quando abraçamos a língua com delicadeza, ela devolve-nos esse amor nas mesmas proporções. Na incerteza com que o mundo palpável nos brinda, salvam-nos as frases vagarosamente depuradas e as imagens feitas filosofia. Sim, as personagens dos livros são os retalhos das vidas em que tropeçámos algures. Nos quadradinhos deste álbum, os balões atafulham-se com letras manuscritas. Cada um com a sua tipografia, como se os ângulos de um símbolo definissem um pouco mais daquilo que somos. Ou do que fomos. Todos os dias, de capa ao pescoço. Heróis de narrativas que nunca vão ser deslindadas por outras pessoas. A conquistar identidades entre ser sujeito e qualquer predicado da existência.

in "Asterios Polyp" de David Mazzucchelli

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

#23

Deixou-se levar. Foi a uma daquelas lojas onde noventa desportos se arrumam em (sabe Deus quantos) metros quadrados e escolheu a tenda mais fácil de montar. Uma daquelas que se atiram ao ar e ficam prontas num instante. O plano era simples. Ir ter com ele e acampar ali, ao seu lado. Não queria invadir nada. Na verdade, a tenda serviria apenas os momentos pontuais em que quisessem estar juntos. O amor feito aparelhagem. (Play, pause, play.) Esperar pelo timing certo. O amor feito dj set. Acertar o tempo de cada disco até encaixar. (Pitch para cima, pitch para baixo.) Não que seja importante saber utilizar um crossfader para sobreviver a um acampamento. Até porque nestas histórias costuma resumir-se tudo à figura do príncipe encantado, e toda a gente sabe que a realeza não só não acampa, como (regra geral) percebe muito pouco deste tipo de geringonças. Mas ela não procurava um príncipe. Na verdade, queria ser ela a princesa. De headphones na cabeça, a escolher refrões de depuração requintada, como se as bpms acelerassem o coração em sintonia com as hormonas. Afinal, dizem que o amor é cerebral e (cientificamente) quase uma ilusão. Seria bom poder desenhar um cenário com a banda sonora perfeita. O ideal era mesmo acampar longe dali. Numa casa qualquer, onde houvesse um bom sistema de som. O amor são dois discos. Basta tocá-los à velocidade certa.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Marco Wessel.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

#22


Capicua - "Casa no Campo" from MPAGDP on Vimeo.

"Diz-me qual é o teu perfume favorito.
- Pão quente, terra molhada e manjerico."

Mergulhar em livros de ficção e de ciência atravessada entre as histórias, enquanto se mudam páginas digitais à velocidade da luz. A tinta é electrónica, mas, muito para lá das palavras, o amor ainda reina em formato analógico. E as frases mais bonitas entopem os servidores da humanidade que é gostar de alguém. Desculpa-me, o desenho dos laços que queremos atar nunca fica perfeito e, volta e meia, desemboca no malfadado "404 Error". Esta vida é uma selva, mas eu preciso de sopas e descanso. Quero uma casa no campo.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Esplendor


Há músicas que sussurram mais alto aquilo que não conseguimos dizer. E adoptamo-las devagarinho numa espécie de busca incessante pela plenitude da comunicação. Os desastres do coração, os laços que atamos e desatamos ao longo dos dias, as expectativas e as promessas quebradas parece tudo largado ao seu expoente máximo quando nos agarramos aos substantivos de outras vozes. O esplendor da chuva que cai lembra os filmes que nunca vimos e as cenas que gostaríamos de protagonizar. Delicadamente, como se a subtil violência das letras alinhadas nos trouxesse novos planos. Grandes planos de cores cintilantes, dignos de um qualquer trabalho publicado no Vímeo. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

#21

"De tanto me devotar ao meu ofício, escrevendo e reescrevendo, corrigindo e depurando textos, mimando cada palavra que punha no papel, não me sobravam boas palavras para ela."

in Budapeste, Chico Buarque de Hollanda

O romance que estava a ler não cheirava a bossa-nova. Na verdade, era uma espécie de crónica alargada sobre histórias de amor desafinadas pela falta de polimento. Afinal, os dramas cariocas viviam alinhados com os seus: vivia fascinada com as problemáticas das relações humanas. Obcecada com o amor e com a vontade de ter um par que a acompanhasse nas restantes danças da sua vida. Mas parecia que a sucessão ininterrupta de dias e noites trazia mais complicações que facilidade. Os nós que nunca se desatavam obrigavam-na a investir mais tempo naquilo, como se o tempo significasse qualidade. O trabalho espremia-lhe a vontade e a capacidade de execução de provas de romantismo exacerbado. As declarações fugiam-lhe entre os dedos, esgotadas pelos intermináveis textos que escrevia no horário de expediente. E nem sequer podia entregar-se escondida nos poemas dos outros, que ele não lia versos. Ainda assim, a ironia do destino parecia querer alinhar aquela existência conjunta. Na ausência prolongada que a jornada laboral ditou, ele disse-lhe que pensar em futuros hipotéticos a dois o desconcentrava. "Escreve-me", ouviu-se do outro lado do telefone. Não podia dizer que não. Por isso, foi comprar um dicionário, na esperança de encontrar todos os sinónimos da palavra amor.

Fotografia licenciada em Creative Commons por babi mouton.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

#20

O problema das declarações de amor, ou de qualquer outra intenção, é que às vezes são mesmo verdade. A mania que as pessoas têm de traduzir o que sentem por palavras define grande parte do que somos, nem que seja pela doçura que imprimimos nas frases com que confrontamos o outro lado. É sempre melhor quando a ternura invade o que queremos dizer, mesmo que queiramos definir novas tragédias. No fim do dia, os poemas parecem sempre mais bonitos quando não é a nossa mão que os escreve.


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Fundamentalismos Cívicos #3

Sobre isto.

São dias tristes. Reestruturar um jornal como o Público devia significar a uma aposta forte em mais conteúdos multimédia, sim (até porque um bom meio de comunicação online não deve viver só do texto com uma fotografia ao lado), mas também em jornalismo de investigação e jornalismo especializado. Reestruturar devia ser sinónimo de melhorar.
Infelizmente, em Portugal, os verbos já quase nunca significam o que é suposto e as "reestruturações" de hoje em dia são, na verdade, devastações industriais onde os senhores do dinheiro ditam os serviços que cada um precisa/gosta/adquire. Eu precisava e gostava do Público como ele sempre foi: impresso. Não o comprava todos os dias, confesso, mas gostava de o fazer sempre que podia e/ou me interessava.
Mais uma vez, um obrigada aos grandes grupos económicos nacionais por nos tirarem o pouco que resta da pluralidade de imprensa e do acesso à informação. E, claro, por utilizarem o seu poder de investimento em destruir as partes boas da nossa sociedade em vez de melhorá-las.
Aos 48 colaboradores do Público a quem calhou o verbo "despejar", espero que um dia deixemos todos de ser um número.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

#19

Na eterna tentativa de fazer com que resulte de novo, parece que os refrões se entalam nas coisas que se ouviram com o calor do momento. Se o arrependimento matasse, se não tivesse dito aquilo, se pudesse voltar atrás. Mais uma vez, a tirania da língua ao serviço do infortúnio que é a insegurança humana no que toca a relações. Dá-me mais um bocadinho de ti, diz ela. Dá-me mais um bocadinho de espaço, diz ele. Nos bocadinhos que se acumulam entre os dois, perdem a razão e os sonhos. Ainda assim, mantêm a insistência no verbo tentar, como se a próxima vez trouxesse a garantia de que aprenderam com os erros. A conversa em loop à espera que o outro não desista define uma espécie de terapia de casal que nunca pensaram em fazer. Frases espaçadas, calmas como a noite que impera às 2 da madrugada de Domingo, para que nada se estrague à conta de ânimos exaltados. Ao menos isso: a ser uma desgraça, que não seja pela força com que se atiram as palavras.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

#18

Reciclam-se fórmulas e reinventam-se definições. O que queremos, o que precisamos, o que assumimos. Entre a tranquilidade e o desassossego, o romantismo até pode ter caído em desuso, mas uma declaração de intenções nunca vai deixar de o ser. E, por isso, há sempre a tentação da paixão entalada no compromisso de uma vida levada no plural. Aqui ou lá fora, já não sabemos, que este país não é para velhos nem para novos. Não é para ninguém, mesmo com o Sol e a praia e os sorrisos. Mesmo com o amor. Desfiam-se possíveis futuros e reaprendem-se as classes gramaticais que o limbo faz imperar, advérbios e conjunções: "se", "talvez", "ou". Nunca sabemos nada, a não ser que o amor continua lá, mesmo que as ilusões de outros tempos tenham mudado. O verbo sonhar feito utopia da sociedade que nos viu e fez crescer. Não há dinheiro, mas há montras recheadas de coisas boas que ainda queremos comprar. Ser mulher a tempo inteiro faz doer a carteira, mesmo quando a TPM ainda está longe. Relógios e calendários sobrepostos até ao infinito porque temos de fazer mais, produzir mais, ser mais. No fim do dia, a tirania do capitalismo toma conta dos nossos dias e nem os sentimentos escapam. Ainda assim, o amor é, muito provavelmente, a única coisa que nunca está fora de moda.

Fotografia licenciada em Creative Commons por alykat.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

#17

"O amor não é bricolage, pá."

Como se desse para montar e desmontar, qual móvel do IKEA. É verdade que se constrói. Mas se vamos por esse caminho, também podemos fazer a analogia com a jardinagem. Afinal, o amor também se cultiva, rega, poda, essas coisas todas. Sem verdades absolutas, o amor é tipo a Anatomia de Grey, onde nunca há pares ou camas certas. Ou o novo cartaz de publicidade ao Sumol Limão, que sabe ao que nós quisermos. Por isso é que nunca sabemos defini-lo: depende de nós e dos outros. O sentimento, as declarações e as soluções mudam como as colecções de uma qualquer loja de roupa num centro comercial. Sim ou não. Felicidade ou desgosto. O amor é a dicotomia de cada existência resumida num instante: festa, ressaca, descanso. A sucessão de (quase) tudo o que quisermos ou nos dispusermos passar. Sendo o que preferirmos, vejo-o como um cubo de Rubik. Queremos desesperadamente completar cada lado, mas as 43.252.003.274.489.856.000 possibilidades jogam sempre contra nós e a teoria do caos refastela-se alegremente pelos nossos dias. Por enquanto, é continuar a girar.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Toni Blay

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

#16

Entre os telhados e os barcos da Transtejo lá ao fundo, a paisagem desenhava-se igual à dos postais mais bonitos da cidade. No topo do Hotel Mundial, respiravam-se os restos da Lisboa que sobrava depois das passeatas sem fim, que subir ao Alto da Graça ou as escadas do Metro é quase a mesma coisa. Nos intervalos da banda sonora oficial do fim de Verão, as palavras entaladas pelos anos que tinham ficado pelo caminho teimavam em atropelar-se. Não que fossem diferentes de tudo o que já se tinha dito até então. O que tinha mudado era a conjuntura, o contexto, o cenário dos acontecimentos. Tal e qual uma aula de História. Encostada ao acrílico que separava o chão da vertigem, parecia-lhe tudo demasiado estático no meio de toda a desordem. Por aquela altura, o gelo da sua super snobe água gaseificada com aroma a limão tinha derretido e começavam a doer-lhe os pés, por causa dos sapatos. Aquela coisa de mostrar a perna nunca tinha sido o seu forte. Ainda assim, manteve a postura só para continuar a conversa. Afinal, os recomeços são quase todos iguais, embora a bebida vá mudando conforme as pessoas. 

Fotografia licenciada em Creative Commons

domingo, 26 de agosto de 2012

#15

Acordou embrulhada na ressaca do dia anterior. Ainda antes de abrir os olhos, lembrou-se das misturas da noite anterior. Os copos a ir e vir, o vinho branco, a coca-cola, o moscatel. O sol já se tinha levantado, mas não havia relógio no mundo que lhe pudesse dizer que, realmente, era tarde demais. Apesar de tudo, aproveitou o embalo da luz do dia para seguir o cheiro a pequeno-almoço. Desceu as escadas e reviu o cenário de manhãs abandonadas há anos atrás. Ali estava ele, de janela aberta para Lisboa, como se a cidade fosse a sua nova musa, a cozinhar uma refeição para dois. O ele e o ela transformado em nós, mais uma vez. Inicialmente, achou que o álcool continuava a toldar-lhe a percepção, mas os sacos de compras cheios de comida matinal não mentiam. Lá ao fundo, ouviam-se as verdades de outros dias, na voz de Camané. O sorriso dele convenceu-a de que a noite talvez pudesse não ter sido um desastre tão grande como imaginara."Trouxe os teus cereais preferidos." 

Fotografia licenciada em Creative Commons por tavopp

terça-feira, 24 de julho de 2012

#14

Dizem que a história se repete. Os refrões e os poemas feitos hinos pessoais também. Os loops do gosto e do desgosto nunca deixam de tocar lá ao fundo. No meio dos discos oferecidos e das estrofes dedicadas, atafulham-se ilusões de outros tempos. As luzes lá fora brilham baixinho, como o volume do baixo que tropeça nos sacos espalhados pelo chão. A lengalenga continua, como se versos antigos recuperassem paixões modernas. Os LED vermelhos do despertador marcam a hora certa. Tique, taque, tique, taque, tique, taque. O amor é uma bomba-relógio e alguém cortou o fio errado.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Kevin Dooley

sexta-feira, 20 de julho de 2012

#13

Entre a consola e os sacos de gomas que se empilham em cima da mesa, a ressaca de glicose teima em instalar-se. Passar mais um nível, matar mais um boss, acabar mais um jogo. Como se todas as vitórias humanas estivessem à distância de meia dúzia de botões. Noites que se tornam dias agarrados ao comando, enquanto a vida não toma conta de nós."Game paused" Respira fundo, carrega no start. De novo o caos desenhado no ecrã da televisão. Venham eles, que mato-os a todos.

Fotografia licenciada em Creative Commons por 96dpi

quarta-feira, 27 de junho de 2012

#12

Poesia é em português, que os sentidos não aprendem o amor noutras línguas. Como se o amor pudesse viver entre letras e sinais de pontuação. Dizemos que o verbo amar é indecente, mas só porque nunca o ouvimos quando queremos. Ou precisamos. Os mais românticos juram a pés juntos que o amor não se diz, sente-se. Mentira. O dicionário das sensações só fica completo quando a voz intervém, mesmo que seja baixinho. Ninguém se importa de ser amado com um sussurro, desde que não queiram fazer disso um segredo. O amor é aquele pormenor em que ninguém repara, mas está sempre ali à frente.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Ignacio Sanz

quinta-feira, 14 de junho de 2012

#11

Para trás ficaram as tertúlias de horas tardias e os beijos em sítios onde a intimidade de um amigo não permite. No gira-discos, a poesia brasileira resumia o que restava daquilo que tinham sido. Num compasso certo, entalado entre tempos e contra-tempos, os sonhos desfiavam-se vagarosamente num sambinha de tempos modernos. Os encontros e os desencontros insistiam em sair do armário, da gaveta, da caixa. "O amor é hiper quântico, sim senhora." Nesse dia, sentaram-se à beira-mar, para uma espécie de recapitulação do que se passou nos entretantos: os inícios e os fins, as marés incertas e os barcos que sobreviveram até ali. As garrafas de cerveja alinhavam-se com o pôr-do-sol. Parecia que tudo tinha mudado. (Quero aprender todos os sonhos que tenhas para me ensinar.) Ela sorria por dentro e por fora, num misto de pânico e ilusão: toda a gente sabe que as pessoas nunca mudam. 

Comeram os últimos pedaços de marisco enquanto o lusco-fusco pousou na areia e a banda sonora redesenhou o cenário. Entre as estrelas e o inevitável bafo dos trópicos, o buraco negro da sedução instalou-se. “So tell me you love me only for tonight...” A única coisa certa naquela praia era o rebentar das ondas lá ao fundo. E nem a tirania do calendário conseguia espartilhar os sonhos que renasciam no intervalo de cada suspiro. Nenhum deles sabia se iam começar a manhã embrulhados nos mesmos lençóis ou, sequer, se o pequeno-almoço vinha incluído na viagem. Mas nada disso interessava - aquela madrugada era infinita enquanto eles continuassem a beber. Olhos nos olhos, a promessa estava feita. Encheram os copos com a melhor sangria que o Mar das Caraíbas podia oferecer e brindaram “à sua”. Se o amor saísse dali intacto, não voltaria a ser desperdiçado.

"But the weekend's here started it right 
Even if I only get part of it right 
Live for today, plan for tomorrow 
Party tonight, party tonight 
You got your guards up, I do too. There’s things we might discover 
'Cause you got a path and I do too, we’re perfect for each other"
Drake - The Real Her

Fotografia licenciada em Creative Commons por cell105

quinta-feira, 17 de maio de 2012

#10

"Quase gosto da vida que tenho." Sempre o quase. Agora, ali, escarrapachado na capa do livro que levava para casa. Sabia bem o que tinha nas mãos: a metáfora do seu dia-a-dia a querer transformar-se em verdade absoluta. 

- O emprego de sonho que, afinal, é um pesadelo.
- O ordenado que nunca chega para as contas miseráveis que entopem a caixa do correio.
- Os sacos de compras que nunca consegue transportar porque mora sozinha.
- O amor que teima em manter-se a não sei quantas milhas náuticas de distância.

Valiam-lhe sempre os livros de poesia. E, claro, aquela porra de dedicatória com que o Natal lhe entalara o miocárdio uma vez. Enquanto o Skype não fazia o computador apitar, o tempo contava-se pela quantidade de estrofes que lia. Nos intervalos disso, engolia refrões em loop. Os versos mastigados alimentavam a saudade do que estava para vir. Os separadores no browser dividiam-se entre imobiliárias e  dicas de relações perfeitas. Daquelas bem saudáveis, como uma dieta esforçada para caber no bikini, dignas de livros de auto-ajuda. O fitness emocional não vem do outros, vem de nós, ou pelo menos é o que nos tentam impingir. No meio disto tudo, continuava a comer pipocas. Bem salgadas, que os vinte anos não a deixam engordar, mas ela sabe que esse dia há-de chegar. Dezenas de actualizações depois, o estado de espírito mantinha-se intacto e o livro ainda não tinha desfolhado. A inércia do que está para acontecer tinha tomado conta de si e os fusos horários desfiavam-lhe as expectativas. Devagarinho, assim como quem não quer a coisa. Como se o ícone verde do telefonema em código binário pudesse mudar o título do livro. Perdão, este capítulo da sua vida.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Ryan Fanshaw Photography

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Fundamentalismos Cívicos #2

Não costumo exteriorizar muito os meus princípios sociais ou políticos por estas bandas. Ainda assim, já aconteceu e, hoje, faz sentido acontecer de novo.

Sobre o Pingo Doce e o 1º de Maio

Não sou contra promoções, saldos ou outro tipo de acções de marketing que beneficiem simultaneamente a marca e o consumidor. A campanha  do Pingo Doce era legítima e a publicidade não era enganosa: os 50% de desconto existiram para quem efectuou compras e valor igual ou superior a €100, em qualquer loja da cadeia. A menos que, de facto, estejamos perante uma prática de dumping, nada a apontar. Mas o que se viu ontem não tem nada a ver com a cadeia de supermercados. 

Por acaso, foi no Pingo Doce. A histeria colectiva que se virou contra a marca na verdade teria acontecido em qualquer lugar, desde que as condições de compra tivessem sido as mesmas. Aliás, os 75% de desconto em Cartão Continente já tinham criado um alarido semelhante - não é preciso ser um génio para perceber que os produtos em questão desapareciam das prateleiras ainda antes da hora de almoço de sábados ou domingos (e quem diz esses, diz também os mais baratos). Contudo, a diferença de um desconto imediato para uma coisa que só se reflecte nas semanas (ou meses) seguintes é algo imbatível. 

O que se viu ontem não foi marketing, foi desespero. Os milhares de pessoas que entupiram as lojas e desfalcaram prateleiras de Norte a Sul do país fizeram-no porque, na sua grande maioria, não tinham opção. Com salários miseráveis e despesas muitas vezes impossíveis de fazer frente, a oportunidade de encher a despensa a metade do preço é demasiado aliciante (e importante) para ser desperdiçada. E, por isso, lá vamos nós: duas horas, três horas, sete horas para entrar e sair do supermercado. Encher carrinhos e sacos. Já não há sacos. As portas da loja fecharam, não entra mais ninguém. Prateleiras vazias. Armazéns abertos. E, mais uma vez, o desespero. De quem entra, de quem sai, de quem está lá dentro. As pessoas que não têm dinheiro para viver sobrevivem como podem.

No meio do caos instalado pela miséria a que a maioria das famílias portuguesas está obrigada, esquecemo-nos da premissa inicial do 1º de Maio, que é, afinal, o Dia do Trabalhador. No que toca às grandes superfícies comerciais, a tradição costumava ditar que este era um dia de descanso. Para a Sonae e para a Jerónimo Martins, contudo, em parte graças à alteração da legislação relativa ao horário de funcionamento destas instituições, parece que este ano tudo mudou. 

Claro que houve quem se levantasse para dizer que existem outras profissões trabalham neste e noutros feriados. Contudo, relativamente a isso, faço minhas as palavras de Pedro Quedas: "Sinto-me especialmente triste por termos chegado ao dia em que compras são consideradas um serviço prioritário". Houve também quem aproveitasse para dizer que, na verdade, os funcionários seriam os grandes beneficiados, já que ganhariam o dobro do que num dia normal de trabalho. Que sorte, realmente. Sobretudo quando se ganha provavelmente menos de €3 por hora e esse pagamento suplementar é obrigatório tendo em conta o Código de Trabalho. Por muito jeito que façam (já que os ordenados ali mal dão para a alimentação mensal) os €20 ou €30 que receberam a mais não pagam o stress a que os funcionários do Pingo Doce foram submetidos ontem. Realmente, "sabe bem pagar tão pouco".

No meio de isto tudo, fiquei com dúvidas. Gostava de saber se o Pingo Doce vai continuar a gabar-se de não ser "igual aos restantes supermercados", mantendo os preços baixos todo o ano sem recurso a cartões ou promoções. Também gostava de saber se o Passos Coelho foi ao Pingo Doce de Massamá.

Fotografia licenciada em Creative Commons por tawalker

sábado, 28 de abril de 2012

#9

De repente, ficou a lembrança das sexta-feiras à noite no último quarto da casa. Ou das partidas no comboio da ponte rumo ao porto seguro de outros tempo. Não fazia ideia de quando tinha sido a última vez que tinha guardado o último dia útil da semana para si. Ouvir um disco, ler um livro, apagar a luz do quarto e ficar assim de estores levantados, a olhar para o lado de lá da janela. Ao longe, só se vêem as cortinas dos vizinhos. Neste pedaço de mundo, a vista não é desafogada e a vida também não. O jardim que espreita ali no fim da rua até tem relva que chegue para apanhar Sol, mas isso nunca deu para tirar a barriga da miséria.

O telefone está pousado em cima da cama, silencioso. O ritual constrói-se todo à espera da derradeira chamada. "Se fores seleccionada, ligamos-te à noite. Mesmo à noitinha, está atenta." Por esta altura, é quase meia-noite e os sonhos já não vivem por aqueles lados. Mas o telefone continua ali, de volume no máximo, para que, no caso de começar a tocar, se ouça por toda a casa. E num local fora do alcance dela, para que, no caso de começar a tocar, não se note que tudo o que estava a fazer nesse momento era estar à espera.

Do mal o menos, sempre deu para pintar as unhas nos intervalos da ansiedade. Mais uma semana sem roer a ponta dos dedos. Uma vitória nos tempos modernos, já que o nervosismo arruína sempre qualquer vontade de combater os vícios.  Do mal o menos, roer as unhas ainda não dá direito a internamento em clínicas de reabilitação, mas pouco deve faltar. Pensando bem, talvez fosse um daquele males que chegam por bem. Resolvia metade dos seus problemas. Talvez um pouco mais do que isso, nunca se sabe. Dizem os mais sabidos que são 28 dias desligados da sociedade. 

Quem lhe dera. Quem lhe dera...

Fotografia licenciada em Creative Commons por Anne Helmond

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Dos números e dos dias

Não sou supersticiosa. Não tenho medo de partir espelhos, de passar debaixo de escadas, de pousar a mala no chão. Não acredito em coisas astrológicas, numerológicas ou outras tantas "lógicas"que nos tentam desencaminhar aqui e ali, mas que de razão têm muito pouco. O meu calcanhar de Aquiles é o calendário. As datas. Os números e os meses (não tanto os anos, pelo menos para já, que só conto vinte e três).

Tenho uma cena com os dias 11. Janeiro, Abril, Outubro. Não sei bem se os planetas estavam alinhados nos anos em que os acontecimentos cósmicos se debruçaram sobre os meus dias, mas gosto de acreditar que sim. Nasci duas vezes no dia 11. Cheguei ao mundo quando fazia frio e ganhei uma família 4 anos depois, no mês 4. 4x4. No ano em que achava que podia ser todo-o-terreno (16 redondos anos sobre disso) ganhei uma casa nova e as expectativas de uma vida a dois ficara dobradas ao meio. Em 2007, deixei de gostar do dias 11. Sobretudo do dia 11 de Abril, esse que me tinha dado e tirado a mesma família (quem dá e tira é ladrão). A tirania dos uns (esticados, aprumados e engomados) instalou-se e eu deixei-a estar. O 11/4 desceu ao estatuto de um dia normal e assim ficou até hoje. Na verdade, nunca é um dia normal.

A missão Apollo 13 descolou da Terra no dia 11 de Abril de 1970. O prenúncio nunca foi bom.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Leo Reynolds

segunda-feira, 2 de abril de 2012

#8

E foi ali que se apercebeu que só notava que os dias passavam por ver sistematicamente a data nos pontinhos vermelhos do calendário LED do comboio suburbano. Dia 2 de Abril. Dois do quatro de um ano qualquer. Pouco importava. O que importava era que, afinal, até gostava da viagem e do conforto que os 45 minutos de caminho até Lisboa lhe davam. Quando chegava, já estava acordada à séria. Sem ramelas ou vontade de dormir. Não gostava do tempo perdido, mas gostava de pôr o pé na grande cidade sabendo que naquele dia já tinha passado por outra, e que as manhãs começavam sempre numa vila onde tudo sabe a campo.

Também gostava dos barcos, baptizados com nomes de poetas, alinhados no terminal do Barreiro. Fernando Pessoa, Fernando Namora, Antero de Quental, Jorge de Sena, Damião de Góis. Como se a viagem que separa o Sul do Norte pudesse ser um novo poema a cada dia. Como se a Soflusa fosse igual ao Metro de Nova Iorque e patrocinasse as conquistas de cada existência suburbana com um bilhete de ida e volta. 

Fotografia licenciada em Creative Commons por jakub303

segunda-feira, 26 de março de 2012

#7

Dez euros e três livros novos prontos a colocar na prateleira. Ainda não estudei os alinhamentos cósmicos, pelo que a arrumação ainda é ligeiramente incerta. Enquanto o horário de Verão fizer transpirar Lisboa, pode ser que arranje uma estante nova, onde os romances e os livros técnicos convivam harmoniosamente. A poesia e os ensaios que sosseguem o ego: tem de haver espaço para todos. A ordem, prometo, não será aleatória, mas a importância não será um factor determinante. Afinal, até essa é relativa, variando de acordo com os meses e com os anos. Lapsos temporais à parte, acumulam-se frases de reconhecimento pessoal e auto-destruição. Os sonhos alimentam-se das palavras que devoramos e das narrativas que conseguimos absorver.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Johanna.B

segunda-feira, 19 de março de 2012

#6

Ficou espantada com o facto de nunca lhe ter ocorrido tal possibilidade: ver o luar a dez mil metros de altura. Algures no meio do Atlântico, o café fazia desmaiar as recordações do que ficara em terra. Entre as histórias das mais de duzentas pessoas (bem) arrumadas dentro do Boeing 747 onde seguia, estava também a sua. Ainda assim, e não obstante as sucessivas tentativas de abstracção, a curiosidade sobre as narrativas que dormiam ao seu lado era bem maior do que o desejo de escrever sobre si. Quantas páginas do passaporte teriam carimbado até chegarem ali? Até chegarem àquele preciso momento em que as nuvens de Março se transformaram em auto-estradas da sua aldeia global personalizada.

Por esta altura, acenderam-se as luzes de pânico - “Please, fasten your seat belt”.

Os fusos horários que rebolavam por entre os sete (sempre poucos) dias da semana de férias não a deixavam dormir. Ou talvez fosse a impaciência de quem sabe que ainda faltam (pelo menos) oito horas até ao destino final. Independentemente dos motivos, a premissa inicial mantinha-se: a paixão pelas narrativas alheias, como se a intimidade de cada um pudesse servir de retrato fugidio da humanidade. Perdão, da modernidade. Gostava das dicotomias instaladas pela chamada evolução. Tudo cada vez mais perto, mas inevitavelmente mais longe, pela fugacidade com que somos obrigados a olhar para o universo. Ambivalências socio-culturais que se vão tornando cada vez mais biológicas. Afinal, a natureza tem tendência a moldar-nos de acordo com as nossas necessidades. Ao que parece, é muito mais humana do que divina: fomenta a mudança ao invés da eternidade, que (quase) tudo o que é divino nos tem sido oferecido ao longos dos milénios que carregamos enquanto espécie.

O jantar já foi servido e a senhora do lado continua a ler um ebook qualquer no seu tablet. Tem sido assim desde que levantaram vôo. Ainda tem 43% de bateria. Pode ser que lhe chegue até ao fim da viagem. Pode ser que não. O alfabeto cirílico denuncia a eventualidade de ter de correr até ao outro lado do terminal assim que aterrarem. “Your luggage goes directly to your destination.” Do mal o menos, as escalas estão cada vez mais curtas. As vidas estão cada vez mais longas. E imprevisíveis. Hollywood agradece. As restantes Mecas das indústrias do entretenimento também.

Foto licenciada em Creative Commons por lokidude99

sábado, 10 de março de 2012

#5

E depois existem as cidades. O betão armado e os tijolos empilhados, tudo bem arrumado em forma de casas, ou de escritórios, ou de lojas. Tanto faz. Tem é de estar tudo sujo e ferrujento. No fim de contas, não é o espaço que importa. Nem os prédios que se erguem até onde nunca conseguimos ver. O que nos esmaga a existência são os mais de oito (dez, dezoito, vinte e dois) milhões de vidas que se cruzam ali. Todos os dias. 24 horas. 7 dias por semana. Em versão ininterrupta, que as histórias que temos para contar também escolhem fins-de-semana e feriados. E a arte que temos esvai-se pelos carris do metro, das suas  incontáveis linhas e infinitas possibilidades de escolha. Onde ir, o que comer, como sobreviver aos quatro cantos de uma cidade que teima em nunca dormir. Luzes que nunca se apagam, tal como os talentos que se escondem atrás das escadas de emergência de cada edifício. Felizmente, a humanidade não se apaga como se apagam grafittis. Agora, restam apenas as assinaturas dos mais afoitos, que são também os que desenham pior. Queens, Bronx, Manhattan, Brooklyn. Headphones nos ouvidos, enquanto se escolhe qual a saída que nos dá mais jeito naquela estação. Hip-hop de fundo, nos 45 minutos de caminho até ao único reduto de sossego que resta neste pedaço de terra. Ouvem-se histórias de amor e desamor enquanto se entranha o sotaque de um inglês preguiçoso. Giram cabeças pelos chão, em acrobacias impossíveis, e desbravam-se novas dimensões do jazz, dos solos, da moda, da arquitectura, da performance. Qualquer milímetro deste chão é um palco em potência. Estrelas cadentes que nunca se vêem, porque vivem eternamente sob o luar. E os rios que separam as ilhas e as gentes não chegam para reflectir todos os astros. A noite ainda não vai alta e a procissão mantém-se sempre intacta, no adro de cimento que define todo o puzzle. Nunca vamos saber se o labirinto tem saída, sobretudo para quem sempre viveu dentro dele, mas ao fundo vê-se o mar. Welcome home.

Brigton Beach, NY

sábado, 3 de março de 2012

O árbitro

Nunca houve nada a fazer. O amor sempre foi inevitável. E, na verdade, nunca se quis evitar. Saltou-se a paixão, quando começou a arder demasiado, pois claro. Mas aquele aperto em situações de emergência, feito alarme de emoções em permanente sobressalto, manteve-se sempre lá, como se fosse uma daquelas baladas pegajosas que repetimos vezes sem conta até espatifarmos o coração. Até ao limite de não o conseguirmos arranjar. Ainda assim, parece que há sempre o eterno desejo de conhecermos verbos que desafiem os limites impostos à destruição emocional. Esqueçamos todos os "e se?" que ficaram pelo caminho. Isso e os versos apaixonados com que sempre ilustrámos o que havia entre nós. E, já que estamos nisto, por favor não me peças para passear onde fomos felizes. Estamos no intervalo de um derby cujo resultado define quem ganha o campeonato e, por enquanto, o árbitro não parece ser parcial. Distribuiu alguns cartões amarelos e assinalou meia dúzia de foras-de-jogo, sem nunca resvalar para a injustiça.Os ânimos estão acesos. A plateia aguarda ansiosamente pelo cartão vermelho. Ou pelo fim do jogo.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Dave77459

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Encher a barriga como se enche o coração

Nos intervalos dos discursos amedrontados, o novelo de futuro amarfanhado desfia-se devagarinho. Quando a festa surpresa tem partes mais complicadas, das duas uma: ou vai ou racha. Quando racha, normalmente não há nada a fazer. Quando vai, costuma ir melhor do que veio e, regra geral, dá para tricotar um agasalho novo. Daqueles quentinhos, para levar à praia nos dias frios de Inverno em que o Sol toma sempre conta de nós e da vontade de pequeno-almoço. Para encher a barriga como se enche o coração. Mas em versão europeia, que a saúde cardíaca/coronária é para manter, pelo menos por mais algumas décadas.

Foto licenciada em Creative Commons por pie4dan

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O amor é uma festa surpresa

"É o problema do amor: nunca conseguimos alcançar o outro. Damo-nos mais com as pessoas com quem nos escapa sempre alguma coisa."
Manuel António Pina em entrevista ao iOnline, 18/2/2012

Se nunca houver imprevisibilidade nas pessoas com quem nos damos, deixa de haver um propósito em estar junto. O amor é a surpresa das coisas a cada dia que passa. Gosto de pensar que é a surpresa das coisas boas. Mas na vida as coisas não são como a roda dos alimentos, em que o que é carne é carne e o que é peixe é peixe. Pão, pão. Queijo, queijo. E, por isso, o amor traz quase sempre consigo a inevitável surpresa das coisas más e a insegurança perpétua de nunca alcançar o outro. De não reconhecer. De não compreender. De chegar ao fim do dia e aterrar de cabeça na conclusão de que pode não ter feito sentido. O amor é uma festa surpresa. De vez em quando, corre bem.

Foto licenciada em Creative Commons por  W Mustafeez

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Entalada

Quando deu por si, era tarde demais. O “pipipi” das portas que estão prestes a fechar foi menos brando do que o costume e acabou por ficar assim, a modos que entalada nas portas do Metro. Tudo se resumia a isso. Estava ali, entalada. No permanente vai não vai, chove não molha, não f*de nem sai de cima. Ironia do destino, a dicotomia do entalanço vem no primeiro múltiplo de dois. A dualidade da vida moderna ditou que a dúvida se instalasse no trabalho e no amor. Who cares? Ninguém, claro. Ou seja, quase tantas pessoas quantas as que se importavam que naquele preciso instante ela estivesse entalada entre as desconfortáveis portas do metro lisboeta.

Talvez por isso levar com a porta na tromba tenha sido um abre-olhos daqueles que só aparece quando temos os olhos fechados. Pelo menos uma parte estava decidida: ia trabalhar para a florista da amiga. Não que fizesse particular questão em juntar flores como quem pinta um quadro. Afinal, nunca levara muito jeito para trabalhos manuais. Mas com o dia dos namorados à porta, havia a esperança de poder servir de copy a corações apaixonados e desinspirados. Modernices! Do mal o menos, o tempo perdido numa agência de publicidade dava-lhe alento e talento (talento não, que esse nunca lhe faltara) para tornar o mundo um bocadinho melhor. Ou apenas mais simpático. Como o senhor que a puxara para dentro da carruagem, quando a viu aflita e entalada. Afinal, era quase só isso que faltava (bastava?) na sua vida. Simpatia.

Foto licenciada em Creative Commons por Swamibu


segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

#4

Nos dias em que preciso de uma retro-escavadora para arrumar o quarto, preciso quase sempre de outra para me arrumar cá dentro. Sou uma hemeroteca com anos de jornais diários por arquivar. Além do caos dos papéis empilhados pela secretária, há o cotão que se acumula em cada pedaço de madeira do chão. A empregada teima em não aspirar o pó. Não faz mal. Hoje vou arrumar a secretária. Aspirar o chão. Arrumar o quarto. Hoje vou arrumar tudo o que está desarrumado por estes lados. Fazer aquilo que os mais sábios insistem de chamar "seguir com a vida". Andar para a frente, que para a frente é que é o caminho. Pena que a retro-escavadora só escave para trás.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

#3

Às vezes há a vontade de escrever mais. E normalmente - quase quase sempre -, é só porque se anda a ler mais. As palavras são assim: tendem a dar-nos tanto quanto lhes damos a elas. Do mal o menos, parece que de vez em quando acabamos por fazer as pazes. Qual casal apaixonado. Daqueles cujo amor anda sempre ali no limiar da irritação e do que não conseguimos aturar nem por nada. Amar e odiar em uníssono na mesma frase. Amanhã logo se vê para que lado acordamos. E se o que me trazem sempre dá para alimentar uns quantos sorrisos. Como quando nos encontramos nos transportes públicos, na esperança que o subúrbio tome um bocadinho melhor conta de nós.

Foto licenciada em Creative Commons por sk8geek

domingo, 8 de janeiro de 2012

700 dias de ti

Foram mais de 700 dias de ti. Na altura, a viragem das duas décadas acenava a um sucesso com mais olhos que barriga. Ninguém nos tinha avisado que seria o maior desafio dos nossos dias. Nunca chegámos a chorar juntos, mas também nunca foi preciso. No meio de todo o desespero que se instalou na nossa segunda primavera, manteve-se sempre intacta a recordação daquele abraço. Tinha perdido o último comboio da noite e não tinha maneira de voltar para casa. Limpaste-me as lágrimas com o teu casaco e tomaste conta de mim nessa noite. Foste buscar-me à estação e levaste-me a passear pelo Bairro Alto, para que a angústia de estar abandonada em Lisboa não pesasse tanto. E assim ficámos até hoje. Ensinaste-me a gostar de novas palavras e aprendi milhares de universos no meio de cada sorriso e discussão. Pelo caminho quase perdemos os ursos polares, as mensagens a meio da noite e tropeções fortuitos entre a capital e os seus arredores. Mas salvou-se o mais importante: aquele abraço com mais de dois anos trouxe-nos até aqui. E manteve-se intacto. Obrigada.