segunda-feira, 26 de março de 2012

#7

Dez euros e três livros novos prontos a colocar na prateleira. Ainda não estudei os alinhamentos cósmicos, pelo que a arrumação ainda é ligeiramente incerta. Enquanto o horário de Verão fizer transpirar Lisboa, pode ser que arranje uma estante nova, onde os romances e os livros técnicos convivam harmoniosamente. A poesia e os ensaios que sosseguem o ego: tem de haver espaço para todos. A ordem, prometo, não será aleatória, mas a importância não será um factor determinante. Afinal, até essa é relativa, variando de acordo com os meses e com os anos. Lapsos temporais à parte, acumulam-se frases de reconhecimento pessoal e auto-destruição. Os sonhos alimentam-se das palavras que devoramos e das narrativas que conseguimos absorver.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Johanna.B

segunda-feira, 19 de março de 2012

#6

Ficou espantada com o facto de nunca lhe ter ocorrido tal possibilidade: ver o luar a dez mil metros de altura. Algures no meio do Atlântico, o café fazia desmaiar as recordações do que ficara em terra. Entre as histórias das mais de duzentas pessoas (bem) arrumadas dentro do Boeing 747 onde seguia, estava também a sua. Ainda assim, e não obstante as sucessivas tentativas de abstracção, a curiosidade sobre as narrativas que dormiam ao seu lado era bem maior do que o desejo de escrever sobre si. Quantas páginas do passaporte teriam carimbado até chegarem ali? Até chegarem àquele preciso momento em que as nuvens de Março se transformaram em auto-estradas da sua aldeia global personalizada.

Por esta altura, acenderam-se as luzes de pânico - “Please, fasten your seat belt”.

Os fusos horários que rebolavam por entre os sete (sempre poucos) dias da semana de férias não a deixavam dormir. Ou talvez fosse a impaciência de quem sabe que ainda faltam (pelo menos) oito horas até ao destino final. Independentemente dos motivos, a premissa inicial mantinha-se: a paixão pelas narrativas alheias, como se a intimidade de cada um pudesse servir de retrato fugidio da humanidade. Perdão, da modernidade. Gostava das dicotomias instaladas pela chamada evolução. Tudo cada vez mais perto, mas inevitavelmente mais longe, pela fugacidade com que somos obrigados a olhar para o universo. Ambivalências socio-culturais que se vão tornando cada vez mais biológicas. Afinal, a natureza tem tendência a moldar-nos de acordo com as nossas necessidades. Ao que parece, é muito mais humana do que divina: fomenta a mudança ao invés da eternidade, que (quase) tudo o que é divino nos tem sido oferecido ao longos dos milénios que carregamos enquanto espécie.

O jantar já foi servido e a senhora do lado continua a ler um ebook qualquer no seu tablet. Tem sido assim desde que levantaram vôo. Ainda tem 43% de bateria. Pode ser que lhe chegue até ao fim da viagem. Pode ser que não. O alfabeto cirílico denuncia a eventualidade de ter de correr até ao outro lado do terminal assim que aterrarem. “Your luggage goes directly to your destination.” Do mal o menos, as escalas estão cada vez mais curtas. As vidas estão cada vez mais longas. E imprevisíveis. Hollywood agradece. As restantes Mecas das indústrias do entretenimento também.

Foto licenciada em Creative Commons por lokidude99

sábado, 10 de março de 2012

#5

E depois existem as cidades. O betão armado e os tijolos empilhados, tudo bem arrumado em forma de casas, ou de escritórios, ou de lojas. Tanto faz. Tem é de estar tudo sujo e ferrujento. No fim de contas, não é o espaço que importa. Nem os prédios que se erguem até onde nunca conseguimos ver. O que nos esmaga a existência são os mais de oito (dez, dezoito, vinte e dois) milhões de vidas que se cruzam ali. Todos os dias. 24 horas. 7 dias por semana. Em versão ininterrupta, que as histórias que temos para contar também escolhem fins-de-semana e feriados. E a arte que temos esvai-se pelos carris do metro, das suas  incontáveis linhas e infinitas possibilidades de escolha. Onde ir, o que comer, como sobreviver aos quatro cantos de uma cidade que teima em nunca dormir. Luzes que nunca se apagam, tal como os talentos que se escondem atrás das escadas de emergência de cada edifício. Felizmente, a humanidade não se apaga como se apagam grafittis. Agora, restam apenas as assinaturas dos mais afoitos, que são também os que desenham pior. Queens, Bronx, Manhattan, Brooklyn. Headphones nos ouvidos, enquanto se escolhe qual a saída que nos dá mais jeito naquela estação. Hip-hop de fundo, nos 45 minutos de caminho até ao único reduto de sossego que resta neste pedaço de terra. Ouvem-se histórias de amor e desamor enquanto se entranha o sotaque de um inglês preguiçoso. Giram cabeças pelos chão, em acrobacias impossíveis, e desbravam-se novas dimensões do jazz, dos solos, da moda, da arquitectura, da performance. Qualquer milímetro deste chão é um palco em potência. Estrelas cadentes que nunca se vêem, porque vivem eternamente sob o luar. E os rios que separam as ilhas e as gentes não chegam para reflectir todos os astros. A noite ainda não vai alta e a procissão mantém-se sempre intacta, no adro de cimento que define todo o puzzle. Nunca vamos saber se o labirinto tem saída, sobretudo para quem sempre viveu dentro dele, mas ao fundo vê-se o mar. Welcome home.

Brigton Beach, NY

sábado, 3 de março de 2012

O árbitro

Nunca houve nada a fazer. O amor sempre foi inevitável. E, na verdade, nunca se quis evitar. Saltou-se a paixão, quando começou a arder demasiado, pois claro. Mas aquele aperto em situações de emergência, feito alarme de emoções em permanente sobressalto, manteve-se sempre lá, como se fosse uma daquelas baladas pegajosas que repetimos vezes sem conta até espatifarmos o coração. Até ao limite de não o conseguirmos arranjar. Ainda assim, parece que há sempre o eterno desejo de conhecermos verbos que desafiem os limites impostos à destruição emocional. Esqueçamos todos os "e se?" que ficaram pelo caminho. Isso e os versos apaixonados com que sempre ilustrámos o que havia entre nós. E, já que estamos nisto, por favor não me peças para passear onde fomos felizes. Estamos no intervalo de um derby cujo resultado define quem ganha o campeonato e, por enquanto, o árbitro não parece ser parcial. Distribuiu alguns cartões amarelos e assinalou meia dúzia de foras-de-jogo, sem nunca resvalar para a injustiça.Os ânimos estão acesos. A plateia aguarda ansiosamente pelo cartão vermelho. Ou pelo fim do jogo.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Dave77459