sábado, 28 de abril de 2012

#9

De repente, ficou a lembrança das sexta-feiras à noite no último quarto da casa. Ou das partidas no comboio da ponte rumo ao porto seguro de outros tempo. Não fazia ideia de quando tinha sido a última vez que tinha guardado o último dia útil da semana para si. Ouvir um disco, ler um livro, apagar a luz do quarto e ficar assim de estores levantados, a olhar para o lado de lá da janela. Ao longe, só se vêem as cortinas dos vizinhos. Neste pedaço de mundo, a vista não é desafogada e a vida também não. O jardim que espreita ali no fim da rua até tem relva que chegue para apanhar Sol, mas isso nunca deu para tirar a barriga da miséria.

O telefone está pousado em cima da cama, silencioso. O ritual constrói-se todo à espera da derradeira chamada. "Se fores seleccionada, ligamos-te à noite. Mesmo à noitinha, está atenta." Por esta altura, é quase meia-noite e os sonhos já não vivem por aqueles lados. Mas o telefone continua ali, de volume no máximo, para que, no caso de começar a tocar, se ouça por toda a casa. E num local fora do alcance dela, para que, no caso de começar a tocar, não se note que tudo o que estava a fazer nesse momento era estar à espera.

Do mal o menos, sempre deu para pintar as unhas nos intervalos da ansiedade. Mais uma semana sem roer a ponta dos dedos. Uma vitória nos tempos modernos, já que o nervosismo arruína sempre qualquer vontade de combater os vícios.  Do mal o menos, roer as unhas ainda não dá direito a internamento em clínicas de reabilitação, mas pouco deve faltar. Pensando bem, talvez fosse um daquele males que chegam por bem. Resolvia metade dos seus problemas. Talvez um pouco mais do que isso, nunca se sabe. Dizem os mais sabidos que são 28 dias desligados da sociedade. 

Quem lhe dera. Quem lhe dera...

Fotografia licenciada em Creative Commons por Anne Helmond

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Dos números e dos dias

Não sou supersticiosa. Não tenho medo de partir espelhos, de passar debaixo de escadas, de pousar a mala no chão. Não acredito em coisas astrológicas, numerológicas ou outras tantas "lógicas"que nos tentam desencaminhar aqui e ali, mas que de razão têm muito pouco. O meu calcanhar de Aquiles é o calendário. As datas. Os números e os meses (não tanto os anos, pelo menos para já, que só conto vinte e três).

Tenho uma cena com os dias 11. Janeiro, Abril, Outubro. Não sei bem se os planetas estavam alinhados nos anos em que os acontecimentos cósmicos se debruçaram sobre os meus dias, mas gosto de acreditar que sim. Nasci duas vezes no dia 11. Cheguei ao mundo quando fazia frio e ganhei uma família 4 anos depois, no mês 4. 4x4. No ano em que achava que podia ser todo-o-terreno (16 redondos anos sobre disso) ganhei uma casa nova e as expectativas de uma vida a dois ficara dobradas ao meio. Em 2007, deixei de gostar do dias 11. Sobretudo do dia 11 de Abril, esse que me tinha dado e tirado a mesma família (quem dá e tira é ladrão). A tirania dos uns (esticados, aprumados e engomados) instalou-se e eu deixei-a estar. O 11/4 desceu ao estatuto de um dia normal e assim ficou até hoje. Na verdade, nunca é um dia normal.

A missão Apollo 13 descolou da Terra no dia 11 de Abril de 1970. O prenúncio nunca foi bom.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Leo Reynolds

segunda-feira, 2 de abril de 2012

#8

E foi ali que se apercebeu que só notava que os dias passavam por ver sistematicamente a data nos pontinhos vermelhos do calendário LED do comboio suburbano. Dia 2 de Abril. Dois do quatro de um ano qualquer. Pouco importava. O que importava era que, afinal, até gostava da viagem e do conforto que os 45 minutos de caminho até Lisboa lhe davam. Quando chegava, já estava acordada à séria. Sem ramelas ou vontade de dormir. Não gostava do tempo perdido, mas gostava de pôr o pé na grande cidade sabendo que naquele dia já tinha passado por outra, e que as manhãs começavam sempre numa vila onde tudo sabe a campo.

Também gostava dos barcos, baptizados com nomes de poetas, alinhados no terminal do Barreiro. Fernando Pessoa, Fernando Namora, Antero de Quental, Jorge de Sena, Damião de Góis. Como se a viagem que separa o Sul do Norte pudesse ser um novo poema a cada dia. Como se a Soflusa fosse igual ao Metro de Nova Iorque e patrocinasse as conquistas de cada existência suburbana com um bilhete de ida e volta. 

Fotografia licenciada em Creative Commons por jakub303