quinta-feira, 17 de maio de 2012

#10

"Quase gosto da vida que tenho." Sempre o quase. Agora, ali, escarrapachado na capa do livro que levava para casa. Sabia bem o que tinha nas mãos: a metáfora do seu dia-a-dia a querer transformar-se em verdade absoluta. 

- O emprego de sonho que, afinal, é um pesadelo.
- O ordenado que nunca chega para as contas miseráveis que entopem a caixa do correio.
- Os sacos de compras que nunca consegue transportar porque mora sozinha.
- O amor que teima em manter-se a não sei quantas milhas náuticas de distância.

Valiam-lhe sempre os livros de poesia. E, claro, aquela porra de dedicatória com que o Natal lhe entalara o miocárdio uma vez. Enquanto o Skype não fazia o computador apitar, o tempo contava-se pela quantidade de estrofes que lia. Nos intervalos disso, engolia refrões em loop. Os versos mastigados alimentavam a saudade do que estava para vir. Os separadores no browser dividiam-se entre imobiliárias e  dicas de relações perfeitas. Daquelas bem saudáveis, como uma dieta esforçada para caber no bikini, dignas de livros de auto-ajuda. O fitness emocional não vem do outros, vem de nós, ou pelo menos é o que nos tentam impingir. No meio disto tudo, continuava a comer pipocas. Bem salgadas, que os vinte anos não a deixam engordar, mas ela sabe que esse dia há-de chegar. Dezenas de actualizações depois, o estado de espírito mantinha-se intacto e o livro ainda não tinha desfolhado. A inércia do que está para acontecer tinha tomado conta de si e os fusos horários desfiavam-lhe as expectativas. Devagarinho, assim como quem não quer a coisa. Como se o ícone verde do telefonema em código binário pudesse mudar o título do livro. Perdão, este capítulo da sua vida.

Fotografia licenciada em Creative Commons por Ryan Fanshaw Photography

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Fundamentalismos Cívicos #2

Não costumo exteriorizar muito os meus princípios sociais ou políticos por estas bandas. Ainda assim, já aconteceu e, hoje, faz sentido acontecer de novo.

Sobre o Pingo Doce e o 1º de Maio

Não sou contra promoções, saldos ou outro tipo de acções de marketing que beneficiem simultaneamente a marca e o consumidor. A campanha  do Pingo Doce era legítima e a publicidade não era enganosa: os 50% de desconto existiram para quem efectuou compras e valor igual ou superior a €100, em qualquer loja da cadeia. A menos que, de facto, estejamos perante uma prática de dumping, nada a apontar. Mas o que se viu ontem não tem nada a ver com a cadeia de supermercados. 

Por acaso, foi no Pingo Doce. A histeria colectiva que se virou contra a marca na verdade teria acontecido em qualquer lugar, desde que as condições de compra tivessem sido as mesmas. Aliás, os 75% de desconto em Cartão Continente já tinham criado um alarido semelhante - não é preciso ser um génio para perceber que os produtos em questão desapareciam das prateleiras ainda antes da hora de almoço de sábados ou domingos (e quem diz esses, diz também os mais baratos). Contudo, a diferença de um desconto imediato para uma coisa que só se reflecte nas semanas (ou meses) seguintes é algo imbatível. 

O que se viu ontem não foi marketing, foi desespero. Os milhares de pessoas que entupiram as lojas e desfalcaram prateleiras de Norte a Sul do país fizeram-no porque, na sua grande maioria, não tinham opção. Com salários miseráveis e despesas muitas vezes impossíveis de fazer frente, a oportunidade de encher a despensa a metade do preço é demasiado aliciante (e importante) para ser desperdiçada. E, por isso, lá vamos nós: duas horas, três horas, sete horas para entrar e sair do supermercado. Encher carrinhos e sacos. Já não há sacos. As portas da loja fecharam, não entra mais ninguém. Prateleiras vazias. Armazéns abertos. E, mais uma vez, o desespero. De quem entra, de quem sai, de quem está lá dentro. As pessoas que não têm dinheiro para viver sobrevivem como podem.

No meio do caos instalado pela miséria a que a maioria das famílias portuguesas está obrigada, esquecemo-nos da premissa inicial do 1º de Maio, que é, afinal, o Dia do Trabalhador. No que toca às grandes superfícies comerciais, a tradição costumava ditar que este era um dia de descanso. Para a Sonae e para a Jerónimo Martins, contudo, em parte graças à alteração da legislação relativa ao horário de funcionamento destas instituições, parece que este ano tudo mudou. 

Claro que houve quem se levantasse para dizer que existem outras profissões trabalham neste e noutros feriados. Contudo, relativamente a isso, faço minhas as palavras de Pedro Quedas: "Sinto-me especialmente triste por termos chegado ao dia em que compras são consideradas um serviço prioritário". Houve também quem aproveitasse para dizer que, na verdade, os funcionários seriam os grandes beneficiados, já que ganhariam o dobro do que num dia normal de trabalho. Que sorte, realmente. Sobretudo quando se ganha provavelmente menos de €3 por hora e esse pagamento suplementar é obrigatório tendo em conta o Código de Trabalho. Por muito jeito que façam (já que os ordenados ali mal dão para a alimentação mensal) os €20 ou €30 que receberam a mais não pagam o stress a que os funcionários do Pingo Doce foram submetidos ontem. Realmente, "sabe bem pagar tão pouco".

No meio de isto tudo, fiquei com dúvidas. Gostava de saber se o Pingo Doce vai continuar a gabar-se de não ser "igual aos restantes supermercados", mantendo os preços baixos todo o ano sem recurso a cartões ou promoções. Também gostava de saber se o Passos Coelho foi ao Pingo Doce de Massamá.

Fotografia licenciada em Creative Commons por tawalker