quarta-feira, 29 de agosto de 2012

#16

Entre os telhados e os barcos da Transtejo lá ao fundo, a paisagem desenhava-se igual à dos postais mais bonitos da cidade. No topo do Hotel Mundial, respiravam-se os restos da Lisboa que sobrava depois das passeatas sem fim, que subir ao Alto da Graça ou as escadas do Metro é quase a mesma coisa. Nos intervalos da banda sonora oficial do fim de Verão, as palavras entaladas pelos anos que tinham ficado pelo caminho teimavam em atropelar-se. Não que fossem diferentes de tudo o que já se tinha dito até então. O que tinha mudado era a conjuntura, o contexto, o cenário dos acontecimentos. Tal e qual uma aula de História. Encostada ao acrílico que separava o chão da vertigem, parecia-lhe tudo demasiado estático no meio de toda a desordem. Por aquela altura, o gelo da sua super snobe água gaseificada com aroma a limão tinha derretido e começavam a doer-lhe os pés, por causa dos sapatos. Aquela coisa de mostrar a perna nunca tinha sido o seu forte. Ainda assim, manteve a postura só para continuar a conversa. Afinal, os recomeços são quase todos iguais, embora a bebida vá mudando conforme as pessoas. 

Fotografia licenciada em Creative Commons

domingo, 26 de agosto de 2012

#15

Acordou embrulhada na ressaca do dia anterior. Ainda antes de abrir os olhos, lembrou-se das misturas da noite anterior. Os copos a ir e vir, o vinho branco, a coca-cola, o moscatel. O sol já se tinha levantado, mas não havia relógio no mundo que lhe pudesse dizer que, realmente, era tarde demais. Apesar de tudo, aproveitou o embalo da luz do dia para seguir o cheiro a pequeno-almoço. Desceu as escadas e reviu o cenário de manhãs abandonadas há anos atrás. Ali estava ele, de janela aberta para Lisboa, como se a cidade fosse a sua nova musa, a cozinhar uma refeição para dois. O ele e o ela transformado em nós, mais uma vez. Inicialmente, achou que o álcool continuava a toldar-lhe a percepção, mas os sacos de compras cheios de comida matinal não mentiam. Lá ao fundo, ouviam-se as verdades de outros dias, na voz de Camané. O sorriso dele convenceu-a de que a noite talvez pudesse não ter sido um desastre tão grande como imaginara."Trouxe os teus cereais preferidos." 

Fotografia licenciada em Creative Commons por tavopp